sexta-feira, abril 14, 2006



As coisas. As coisas que se dizem. O que acontece e o que vemos as pessoas deixarem acontecer. Sou um espírito demasiado livre para entender demasiadas coisas . Não que não me apaixone, sim… faço-o, se calhar demasiadas vezes. Mas as coisas deveriam rolar como são: quentes, urgentes, salgadas, absurdas, doces, brutas… nossas, sempre nossas.

O Francisco escreveu isto. E isto é das coisas mais bonitas que, sobre viagens, li. Só isso.


Nenhuma viagem sem coração

As coisas que recordo das viagens aparecem-me muito tempo depois: frases soltas, palavras ligadas a outras por fios sem nexo, labirintos, imagens que perco aqui e ali, que reencontro por acaso num livro ou em alguém que fala de outro lugar, sempre de outro lugar. Pessoas que falam com paixão – é isso que eu quero dizer: pessoas que falam com paixão. Pessoas como o N., com quem troco e-mails, mensagens de telefone para telefone, recados deixados entre viagens ou no meio de viagens.

Viajar, bem vistas as coisas, é sempre andar noutro lugar, estar sempre adiante da nossa vida. N., de resto, é um companheiro de viagem com quem nunca viajei. Eu estou a sair de um lugar e recebo um e-mail: estou a chegar a tal lugar. Da Irlanda à Indonésia, de Buenos Aires a Barcelona (onde vive uma parte do tempo, dividindo a sua vida com o Porto), N. deixa um rasto de viagens, de atenções, de fotografias, de relatos. Depois, fala desse rasto com paixão, com interesse, sem agonia, sem saudade. «Nesse tempo eu namorava uma argentina.» Coisas que se resolvem. Nesse tempo a vida corria de outra maneira e os mapas eram coisas distantes.

Eu aprecio os relatos de N., como aprecio os relatos de viajantes, de gente que arrasta essa bagagem de areia, como acabam por ser as memórias dos lugares e da passagem. Não há, por isso, duas memórias iguais em matéria de viagem. Há um fragmento que pensamos ter visualizado, arrancado à paisagem; um sabor que pode estar identificado; uma palavra que pode estar mais inclinada na nossa direcção. Mas, na verdade, nem que a fotografia seja a mesma (uma esquina da Boca, o bairro genovês de Buenos Aires; um bar de Kuta, o litoral de Denpasar; um restaurante de Maputo, a cidade onde eles mais nascem; uma rua deserta de Oaxaca, onde há aquela luz fatal), ninguém viveu exactamente aquela impressão. E, de qualquer modo, conversamos horas sobre o assunto porque a ideia é multiplicar as palavras para designar sempre a mesma coisa (a estranheza, a nostalgia, a euforia) que se traz das viagens: bilhetes de autocarro e de museu, contas de restaurante e de hotel, caixas de fósforos, jornais em línguas desconhecidas, postais ilustrados, publicidade distribuída na rua, pequenos cadernos preenchidos com garatujas, rebuçados roubados das lojas, pacotes de açúcar dos cafés de Buenos Aires, coisas sem importância aparente, talões de embarque para voos banais, o cheiro dos vulcões (como aquele cheiro que N. me contou que nunca esquecerá, quando esteve na ilha de Flores). Tudo tem uma importância fatal na vida do viajante, e esses restos são sempre o melhor diário de viagem, a melhor antologia de memórias desse tempo de sonambulismo.

E a viagem é isso mesmo: poeira, o coração sempre no fim da tarde, insectos, colibris, o sabor da cerveja, não ter endereço certo, desobedecer aos guias e aos mapas e às intempéries. Refugiar-se sob os beirais de edifícios em cidades desertas, no meio de trovoadas. O coração no fim da tarde é uma imagem que transporto todos os dias. A poeira também. E alguns nomes novos: «vagalume», sonambulismo, domingo de praia, nadar a meio da noite, livros, café.

Somos nómadas, os que amamos a viagem (mesmo que raramente possamos sair de casa): eles, os nómadas, estão sempre noutro lugar, falam das coisas da noite e das coisas da manhã, das coisas do fim da tarde, quando o dia se retira. Coisas fantásticas presas por um fio, recordadas todos os dias para que a vida tenha uma história para acontecer.