quarta-feira, outubro 27, 2004

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Como já antes contei aqui, há uns anos vivi por pouco tempo no Morro do Vidigal no Rio de Janeiro. Hoje ao ler esta notícia, lembrei-me de amigos, ou pais de amigos que ainda por lá vivem. Pela notícia percebi que não podia ser a Carmela, cuja idade exacta não consigo dizer, mas foi mãe do meu amigo ainda adolescente e ele não tem mais de 40 anos. É algo perversa a ideia de tentar perceber, se afinal a notícia é sobre alguém que conhecemos ou não. Mais perverso é o alívio quando, no fim de tudo, percebemos que não é.
D. Carmela é uma personagem fascinante. Natural duma vila costeira do Ceará, casou jovem e foi mãe ainda menor. Por voltas da vida, deixou o filho ainda bébé, com os seus pais e marido e foi atrás da sorte, para o Rio, do fim dos anos sessenta. O que fez e desfez, nessa época, não sei. O filho voltou a conhecê-la aos catorze anos, depois de sair do Ceará para o Rio, com uma escala de dois anos em S. Paulo. Instalaram-se no Morro do Vidigal, o filho foi crescendo e trabalhando em tudo o que arranjava, até subir de ajudante de copa, a maître de restaurante, do melhor hotel do Rio.
Carmela foi casando e descasando, procurando o homem e a vida que era melhor para si. O amor que sempre foi sólido, foi o dela pelo seu filho e o dele por ela. Conheci-a em 1998, com um marido vinte anos mais novo, com sua lanchonete na favela e sua maneira simples e boa de viver. Tratou-me como o filho gringo, zelando por mim, safando-me de bêbados e prostitutas ou do maluco de serviço que passava pela sua lanchonete. Voltei a vê-la em 2003, desta vez loira mas sempre fresca. A lanchonete tinha descido para a entrada da favela (mais perto do mundo e, por conseguinte, mais seguro). Entre estórias e piadas, passei muitas noites de cerveja e salgadinho à conversa com ela e com as diversas personagens que por lá passavam, sempre debaixo da sua asa. O seu humor, a sua forma de lidar com as voltas da vida (que no seu caso foram mais que muitas) e a sua força para seguir a luta, foram uma lição para mim. É uma pessoa por quem tenho um afecto especial. E hoje, depois da notícia, pensei nela. Só isso.