domingo, abril 18, 2004



Por voltas do destino, em Setembro de 1998, "residi" alguns dias no Morro do Vidigal, favela carioca que tem andado nas bocas do mundo, por de lá ter saído o bonde ou caravana de traficantes que assassinou o líder da concorrência na Rocinha, esta, a maior favela da América Latina.

Foram uns dias especiais, onde quem me acolheu, me fez sentir em casa e se preocupou em, tranquilamente, me explicar as regras do lugar. Se bem que choca, ver meninos de 8 ou 9 anos com pistolas presas no elástico dos calções ou adolescentes de 16, com uma AK-47 debaixo do braço a tomarem um guaraná, a habituação ao cenário e aos procedimentos básicos é rápida e surpreendentemente fácil. Não me tenho por louco nem por idiota, sou curioso e terei o lado voyeur de quem vai viajando, mas, ainda hoje, me deixa a pensar, a facilidade com que este filho da classe-média, do país irmão, se adaptou ao dia-a-dia do morro. É obviamente mais fácil, aprender como apanhar uma combi (furgão) a abarrotar, do sistema de transportes interno da favela, do que habituar-se a ver adolescentes a passear armas de fogo. Ainda assim, assusta a facilidade com que se assimila tudo isto.

Apesar de, na altura, estar com pouco dinheiro, sabia que a passagem seria breve, pois, tarde ou cedo, haveria um avião para me levar dali, de volta para casa. Os que são do morro, que fizeram e que fazem o Vidigal, aprenderam a viver com o que por lá se passa. A generalidade das pessoas são de origem humilde, vieram, na sua maioria, do Nordeste à procura de uma chance de ter uma chance. Têm ou fazem trabalhos normais, ou melhor honestos, quase sempre na zona Sul, no eixo Leblon-Ipanema-Copacabana, na Barra ou então no centro da cidade. A favela foi o lugar que encontraram para morar e onde fizeram amigos e conhecidos.

Apanhei também alguns sustos. O maior de todos aconteceu na minha última noite, descendo o morro de combi. A meio da descida, fomos parados pelos traficantes, armados e a tomar posições em telhados e muros, ordenando que disséssemos às pessoas, para irem para casa que "…os homem tão subindo!". Os "homems" são a polícia militar, a PM, famosa mais por matar que por proteger. Algumas curvas depois, a polícia militar assumia também, posições de assalto. Obviamente que estes minutos entre traficantes e polícias não foram muito agradáveis, muito menos a perspectiva de ter que voltar à favela, horas mais tarde, com possibilidade de encontrar algum corpo pelo caminho. Felizmente não foi assim, o único ruído que se ouvia quando voltei, era o das rajadas de metralhadora, dos traficantes, celebrando a desistência da PM.

Durante a minha passagem conheci gente muito sã e cuja companhia apreciei. Nas ruas, no campo de jogos ou no boteco. Conheci uns que gostavam de morar na favela e outros que, apesar de criados lá e proprietários, inclusive, de casa, se queriam vir embora, para a cidade, apesar de nesta tudo ser mais caro. O que nunca conheci, foi alguém que gostasse dos traficantes. Que lhes reconhecessem méritos ou boas acções. Tão pouco ouvi demasiadas queixas, mas aí é mais fácil entender tudo. Nada de estórias heróicas de lutas entre pobres e ricos, de traficantes que alcatroam as estradas do morro ou fazem campos de jogo para a comunidade. O traficante vive de um negócio e a favela, com os seus labirintos de casas e caminhos e com os seus habitantes pouco dados a conversas com a polícia, são o seu habitat natural e perfeito.
Servem de polícia, de tribunal e de carrasco, tudo no mesmo minuto. Inspiram medo e não gratidão.

Voltei ao Rio, em Março de 2003. Por outras voltas do destino, voltei a encontrar o amigo que me havia acolhido no Vidigal, anos antes, agora a viver em Copacabana. Voltamos juntos à favela, para visitar a sua mãe e outras pessoas que conhecia. A favela estava diferente, pareceu-me que mais organizada. Cruzei-me com dois jovens actores, do agora famoso "Cidade de Deus" (descobertos em grupos de teatro da própria favela), conheci a nova entrada, bonita, construída pela Prefeitura e pude ver o novo sistema de taxi-moto cooperativo a funcionar. Voltei outras vezes, algumas sozinho, para conversar, tomar um chope e comer um salgadinho no bar da D. Carmélia, mãe do meu amigo, uma alegre mulher de cinquenta e alguns anos, sempre fresca ao lado do terceiro marido, vinte anos mais novo. No último dia que a visitei, para me despedir, encontrei-a triste. A razão, vim a saber, tinha sido a famosa justiça dos traficantes. Um morador da favela foi à boca-de-fumo, queixar-se aos traficantes que outro morador, por sinal um rapaz bem parecido e honesto (geralmente pouco apreciados), tinha "olhado demais" para a sua mulher. Os traficantes tomaram a denúncia como verdadeira e decidiram que o suposto acto, não poderia passar em branco. Obrigaram o rapaz, sob ameaça de pistola, a beber um litro de cachaça e espancaram-no até ficar irreconhecível. Quando cheguei, dois dias depois do castigo, a vítima estava no Hospital, com prognóstico muito reservado. Foi uma despedida algo triste, onde deu para perceber que a essência da vida do morro não tinha mudado.

Não sei como se resolve o tráfico, não sei como se resolve a pobreza e o medo nas favelas. Fico irritado com muitas das opiniões, umas simplistas outras com visões quase românticas da vida nas favelas, que muitos dos brasileiros que conheco têm. Afirmando que os moradores respeitam e apreciam o trabalho dos traficantes, em prol da comunidade e do controlo do crime dentro das favelas. Parecem-me palavras muito fáceis e os clichês do costume. Só conheci uma e só a conheci por alguns dias, mas o que conheci não foi isso.